Um exercício de roteiro

Dos filmes bacanas que assisto, numa sala de cinema ou em casa, sempre me pego fazendo um exercício de roteiro - extrair a cena que revela a história do filme, a cena chave. É um exercício de concisão que compartilho com os amigos amantes de cinema e de roteiro, mais particularmente. Aqui não há adjetivos, descrições, muito menos o final da história. Você poderá, eventualmente, ouvir a voz dos personagens ao ler o trecho de uma fala ou outra. Assitindo ao filme você poderá concordar comigo ou não, se a cena que escolhi é mesmo a cena chave, afinal as boas histórias podem ser entendidas de diferentes maneiras. Todavia, uma coisa eu garanto: você terá mais da experiência cinematográfica, compreendendo melhor os enredos.

Acompanhe Cena chave e bom filme!

As aventuras de Pi


As aventuras de Pi, dirigido por Ang Lee, escrito por David Magee, baseado na  obra  original de Yann Martel. Quando Pi (Suraj Sharma) se aproxima pela primeira vez da jaula do tigre, seu pai, Santoch Patel (Adil Hussain) lhe ensina uma valiosa lição: “O tigre jamais será seu amigo”. Pi procura Deus em diferentes religiões, mas é no meio do mar que o encontra, o Deus interior. O tigre representa a natureza interior, que é selvagem, precisa ser domada, esta mesma natureza que nos salva e condena.



Homens e Deuses




Homens e Deuses, de Xavier Beauvois, escrito por ele e Etienne Comar — Grande Prêmio do Festival de Cannes em 2010. Argélia, 1996, um grupo de monges cistercienses franceses se encontra acuado em meio à escalada da violência de uma guerra civil. Estão diante do dilema de ficar e continuar a obra de caridade, como o atendimento médico à população sofrida do local, ou deve partir e, assim, garantir sua segurança. Numa reunião com os líderes comunitários, um dos monges diz que eles se sentem como pássaros pousados no galho, sem saber se ficam ou voam para outro lugar. Uma mulher que acompanha a conversa o contradiz: “Vocês são o galho, nós somos os pássaros”. Frei Luc do alto dos seus 82 anos: “Não tenho medo da morte, sou um homem livre”. Cena de grande impacto a que mostra o helicóptero militar sobrevoando o mosteiro com os monges entoando juntos seus cânticos de devoção. Mas a música, que é rara no filme, volta com força. Durante a ceia regada com vinho — no catolicismo o vinho representa o sangue de Cristo que é derramado por nós — uma fita cassete reproduz a música O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky. O diretor Xavier Beauvois fecha em close-ups nos homens, despe-os de sua condição de sacerdotes, e se fixa no silêncio, no olhar, na lágrima, mostra a decisão tomada quanto ao futuro de cada um. Homens e deuses mostra o ser humano que, de forma consciente ou inconscientemente, vive em devoção a Deus, e mesmo assim tão próximos de seu martírio e amor incondicional, fraqueja, titubeia, para sublimar heroicamente sua limitação humana em compreender e interpretar os dogmas e as escrituras sagradas fundadoras de cada religião.

A invenção de Hugo Cabret



A invenção de Hugo Cabret, escrito por John Logan e Brian Selznick, baseado em seu livro homônimo, dirigido por Martin Scorsese. Hugo Cabret (Asa Butterfield) leva Isabelle (Chloe Moretz) ao interior do grande relógio da estação. De lá, vêem Paris como uma grande máquina em funcionamento. “Tudo tem um propósito, as máquinas têm um propósito, o trem leva e traz as pessoas, os relógios marcam o tempo... As pessoas, como as máquinas, também têm um propósito, o meu é consertar as coisas”. Hugo conserta o autômato para consertar sua solidão e acaba consertando Georges Méliès, o primeiro cineasta a descobrir a capacidade dos filmes em capturar os sonhos, ele está velho e triste, um obscuro comerciante e mecânico de brinquedos (sonhos) quebrados e de segunda mão, numa loja da estação. Uma tocante homenagem ao Cinema e sua incrível capacidade de se reinventar para seguir contando histórias. A sequência inicial é primorosa, somos jogados dentro do ambiente, quase esbarramos nas pessoas, queremos vê-las melhor, quem sabe descobrir alguém que não vemos há tanto tempo e poderia estar ali, naquela estação, surgindo em meio à fumaça do vapor. A viagem segue até vermos a estação por completo pelo ponto de vista de Hugo dentro do relógio. Dali ele vê a vida tendo uma vida inteira pela frente. São as maravilhas da projeção em 3D, resta saber quando veremos ação dramática nas várias camadas que a tela tridimensional oferece. Por enquanto estamos na fase das sensações, do realismo das sensações, mas ainda está por chegar um filme que explore diferentes focos de tensão dramática no mesmo quadro e mostre o conteúdo também em 3D.   

Triângulo amoroso



Triângulo amoroso, escrito e dirigido por Tom Tykwer. O casal Simon (Sebastian Schipper) e Hanna (Sophie Rois) se apaixona por um mesmo homem, Adam (Devid Striesow). As relações humanas são retratadas na sua mais completa inanição afetiva, verdadeiro deserto emocional. Na casa de Adam, o parceiro eventual aparece vindo do quarto, enrolado numa toalha, lhe pergunta se quer que vá embora. “Em algum momento, sim”, Adam responde. Em contrapartida à liberdade sexual e ao conforto material, a sociedade pós-moderna, digital, individualista, continua a ter uma dificuldade extrema de estabelecer laços afetivos profundos, duradouros, não consegue fazer da sua paisagem desértica uma floresta densa e misteriosa de vivências sensoriais. As histórias de traição amorosa apresentam três momentos indispensáveis: a traição, ou o que leva a ela, a descoberta ou a situação em que ela se dá, e as consequências, por convenção carregada de culpa e indulgência. Aqui, as três pontas deste triângulo estão em perfeita sintonia, numa frequência de antiperplexidade ansiolítica de um encontro fugaz, em busca de sensações superficiais, lenitivo para suas rotinas massacrantes e desinteressantes. Na sequência inicial, vemos os fios pendurados nos postes, vistos da janela do carro dão uma sensação de que estão correndo. “Seguir adiante” a voz recomenda num tom melancólico, seguir adiante com a vida, apesar ou em razão dos acertos, enganos, desenganos, dos encontros e desencontros. O fio parece se mover, mas está parado, metáfora das relações descartáveis.

Um conto chinês


Um conto chinês, escrito e dirigido por Sebastián Borensztein. Roberto (Ricardo Darin) é um homem solitário, vivendo em sua toca protegida, impenetrável, longe do mundo para ele incompreensível, insensível e hostil. Roberto coleciona notícias bizarras publicadas nos jornais e revistas que lhe caem nas mãos. Roberto fala desolado diante do seu mais recente problema, Jun, o chinês (Ignacio Huang) que apareceu para perturbar sua metódica rotina. “A vida não faz nenhum sentido. Como fui me meter nesta enrascada?”. Jun é o elo inexorável desta grande rede de relações, de atitudes e consequências, ações e reações. 

Meia-Noite em Paris

Meia-noite em Paris, escrito e dirigido por Woody Allen. Quem muito se volta para o passado não lida bem com o presente. Gil Penders (Owen Wilson) é um roteirista obscuro, leitor apaixonado e aspirante a escritor, um espectador entediado com o presente e extasiado como o passado, na sua visão idealizada dos grandes expoentes da literatura, pintura, música, cinema e fotografia. Salvador Dalí o chama para sentar-se à mesa e pergunta se ele já viu um rinoceronte. Sentam-se também o cineasta Buñuel e o fotógrafo Man Ray. Gil lhes fala sobre a sua situação complexa, noivo de uma garota no presente de 2010 e apaixonado por outra que acaba de conhecer no passado de 1920. Buñuel acha que a história daria um filme, Man Ray, uma bela foto, e Dalí, um lindo rinoceronte. Para os surrealistas, aquela situação é completamente real. Em seu delírio algo esquizofrênico, Gil busca aprovação e a obtém plenamente. Ele se dá bem com todos, é reconhecido como um igual aos que se tornaram ícones, chega a brincar com Buñuel, passando uma dica para um filme que o próprio não compreende bem, ou ainda não, pois Gil Penders, o obscuro roteirista aspirante a escritor ao contrário do grande cineasta espanhol, está condenado ao anonimato. No seu delírio de grandeza, seria sua a semente que germinaria para um clássico do Cinema. Mas Gil Penders está em conflito, não deixa ninguém ler seu romance de estreia que há anos vem escrevendo, até sua decisão de casar e viver nos EUA lhe parece incompatível, estando em Paris, no lugar em que tudo aconteceu, e está de certa forma preservado, como pode ser visto no início nas cenas de cartão-postal. Paris é uma cidade-cenário. O passado é assim, sempre tão melhor, bonito, agradável — a musa de Pablo Picasso, Adriane (Marion Cotillard) repete Gil, quer viver na Bella Époque, os anos 20 lhe parecem tão aborrecidos. Contudo, é no presente que as questões podem ser resolvidas, mesmo sendo tão incompleto, insatisfatório no todo, porque em partes, o presente pode até ser interessante, como a dona do antiquário e seus discos de Cole Porter. Gil Penders retorna ao presente, afinal, é nele que chove e deixa Paris ainda mais bela.

Minhas tardes com Margueritte


Minhas tardes com Margueritte, de Jean Becker, escrito por ele e Jean-Loup Dabadie, baseado no  livro La Tête en Friche, de Marie-Sabine Roger. Sempre no mesmo banco de praça, a senhora Marguerittte (Gisèle Casadesus) lê para Germain (Gérard Depardieu). Desta vez, o livro é A Peste, de Albert Camus. Germain se impressiona com a cena dos ratos tomando conta de tudo. Margueritte diz a Germain que ela é fruto de uma história de amor, ele se considera o fruto de um erro. Germain é lento, tosco, desajeitado, mas ao lado de Marguerittte fica manso como um filhote de barriga cheia, embalado pelas palavras suaves e açucaradas da elegante e frágil senhora, ele experimenta sensações e emoções únicas, formando na mente imagens tão nítidas, imagens da sua imaginação excitada pelas palavras a partir da leitura em voz alta. “Você é um ótimo leitor, Germain, tem uma memória auditiva extraordinária!” Ao que ele responde: “Só falei porque me veio à cabeça!”.  Ao prestar ouvidos à leitura, Germain reescreve a história, apropria-se do texto, acrescenta nuances, contrastes, outros elementos, somando tudo isso à sua experiência emocional. Quem gosta de leitura vai gostar de passar as tardes com Margueritte.